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A capacidade da Alemanha em se reconstruir




Em questão de quatro anos de bombardeamentos, realizados pela Real Força Aérea Britânica (RAF) e pela força aérea americana (USAF), uma das maiores cidades da Alemanha deixou de existir como metrópole. Tornara-se um amontoado de pedras, tijolos e pó, com seus milhões de habitantes lutando ferozmente para obter um pão ou uma hortaliça para sobreviver. Isto se deu há 50 anos. Situação que fora profetizada pelo grande poeta Goethe: “Seguidamente sinto uma amarga dor ao pensar que o povo alemão, tão honorável individualmente, é tão miserável coletivamente. A comparação do povo alemão com outros povos desperta em mim um sentimento penoso, do qual trato de escapar como posso.” (W. Goethe, 1813) 
 
Berlim, 1945. A paisagem é lunar, a outrora metrópole alemã reduzira-se a ruínas fantasmagóricas. Prédios e mais prédios encontravam-se calcinados por recentes explosões, devastadoras. O Statistiche Ubersicht, o minucioso levanta­mento estatístico realizado logo depois da capitulação, numerou 245.300 construções parcial ou totalmente des­truídas por bem mais de 300 ataques aéreos da RAF e da USAF. No meio delas arrasta-se uma enor­me fila de mulheres que, de mão em mão, tijolo por tijolo, removem o que restou da arrogância e do fausto da capital do III Reich alemão. Ou­tras, com vassouras improvisadas, tentam resta­belecer um ar habitável às outrora agitadas ruas de Berlim. Esta é uma das cenas finais do docu­mentário Schlacht in Berlin ou A Batalha de Berlim, que até hoje ainda é projetado num cinema da Kurfürsterdam, a avenida principal da parte oci­dental.
Percebe-se nas mulheres um ar resignado. Tocou a vez da geração delas restaurar o que restou da Alemanha. Foi então que me acome­teu a evidência de que reconstruir o país tem sido a sina dos alemães. Se recuarmos ao século XVI verificamos que a primeira dessas Wie­derherstelung — restauração, em alemão — ocorreu depois do vendaval provocado pela Bauerkrieg, a terrível guerra camponesa, subpro­duto indesejado da insubordinação de Martin Lutero. Milhares de rústicos, dos sopés dos alpes bávaros até o Mar do Norte, ergueram-se contra seus senhores e seus castelos, devastando tudo o que viam pela frente. Atendendo ao chamado de um Lutero apoplético, os príncipes afogaram a rebelião em sangue, dizimando-os em Franke­nhause, em maio de 1526. Mas se compararmos com o que se seguiu, no século seguinte, as pilha­gens dos camponeses pareceram cócegas.
De 1618 a 1648 o país se viu palco da rivalidade entre a União dos Protestantes e a Liga dos Interesses Católicos. O dito de Fernando II, um príncipe Habsburgo, educado pelos jesuítas, de que era preferível “governar num deserto do que sobre hereges” confirmou-se na totalidade. Não preci­samos do testemunho de H. J. C. Grímmelshau­sen e seu contundente relato sobre a devastação que a Guerra dos Trinta Anos provocou ao país: o fato de que 2/3 da população pereceu nos basta. Os lobos, os mercená­rios errantes e ervas daninhas disputaram entre si o que restou da Alemanha.
Levaram mais de um século para re­compô-la. Mas o que emergiu no se­guinte, no século XVIII, não foi o dis­curso pacífico de gente como Kant, mas sim a poderosa máquina de guer­ra prussiana, lubrificada pelo rei-sar­gento e utilizada por seu belicoso filho, Frederico II, o Grande. Por sete anos, de 1756 a 1763, lá se foi a Prússia atrás do rufar dos tambores de assalto liderada por aquele incansável capitão-de-guerra, emulo de Napoleão. 

Reconhecidas
Nos princípios do século XIX, a enorme ener­gia e o entusiasmo guerreiro provocado pela Re­volução Francesa, de 1789, transbordou para os lados direitos do Rio Reno. Em 1806, Napoleão pulverizou, sob o olhar assombrado do filósofo O. W. Hegel, os exércitos prussianos em Lena. Até a catástrofe francesa na Rússia, eles domina­ram a Alemanha.
Em 1813, atendendo ao chamado de Frederico Guilherme III — An mein VoIk — e às anteriores preleções do filóso­fo patriota J. O. Fichte, com seus Reden an die deutsche Nation, de 1807-08, onde exaltava em seus discursos à nação alemã, o passado germâ­nico livre e auto-suficiente, milhares de alemães se alistaram nas milícias populares, as landsturm, para expulsar o invasor francês. Pouco tempo depois, a quadriga da liberdade que Napoleão tinha levado para Paris, como troféu de guerra, foi reposta no alto do Podão de Brandenburgo e novamente tudo foi colocado de volta no lugar.
No nosso século, a primeira restauração, aquela que teve início após a assinatura do Tra­tado de Versalhes, de 1919, resultou abortada porque os aliados, vencedores da Guerra de 1914-18, trataram os derrotados como nação delinquente, abrindo, sem querer, as portas para a vingança sadoimperialista de Adolf Hitler.
Re­centemente, passado quase meio século dos es­tragos feitos pelos nazistas, chegam as tristes imagens de Hoyerswerda, Rostock-Lichte­nhagen e Sachenhause, onde arderam os asi­los para estrangeiros. Os fantasmas dos camisas­ parda -— incorporados no crânio vazio dos cabeças raspadas — voltam a atormentar aqueles que, até pouco tempo, estavam apenas preocu­pados em livrar-se do rescaldo do stalinismo.
E assim tem sido o seu destino. Recompuse­ram-se da rebelião camponesa do século XVI; cicatrizaram-se das terríveis devastações das guerras religiosas do século XVII; remendaram-se da Guerra dos Sete Anos do século XIX e, no nosso século, restauraram completamente o país depois do ciclone nacional-socialista. O que ago­ra lhes resta? Heirich Böll, o notável romancista do após-guerra, comentou que estava farto de ver a juventude alemã ser convocada para “mor­rer pela pátria” e que esperava, doravante, que apelassem para que “vivessem pela pátria”. Ve­jo-os como Sísifos modernos, condenados perpe­tuamente a começar tudo de novo, vítimas incorrigíveis de si mesmos, da sua imensa e desastrada infelicidade coletiva.
Fonte: Terra


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